domingo, 13 de novembro de 2011

ARCA, BAÚ, JARDIM

O sótão era o "Olho de Boi" talvez porque a luz do dia lhe chegava através de uma abertura em forma de globo ou porque outro eu visitara com o mesmo nome, lendo uma historinha para jovens. Na ficção e ali realmente, eram lugares de encantamento e de sonho.


Cedo comecei a explorar a arca grande. Meu Deus! Que incrível colecção de ferramentas de marceneiro. Ao lado uma máquina de recortar madeira fina, a pedais, pronta a servir, de que fiz largo uso até inevitavelmente partir a sua serrinha dentada.  


Também havia uma viola e um bercinho de balouçar. Ecos de modinhas tocadas à viola em rasgado nas cordas de arame, cantadas a solo pela mulher à lareira em serões de inverno, talvez trazidas do Brasil pela avó velha que de lá regressara tão pobre como partira. E o berço concebido e executado pelo mesmo artista que nele terá aplicado as ferramentas com talento e arte. E sobre o berço um vestido de baptizado com rendas de festa, naturalmente já muito gasto pelo tempo. 

E cartas. Muitas cartas, não só de Portugal mas de locais de peregrinação como o Brasil, a África e a Índia a que fui arrancando os selos que depois perderia em trocas e baldrocas ou em inimagináveis sumiços. E quantas coisas mais!
Nada que tivesse cotação nos mercados, salvo os selos de que me desliguei antes de qualquer efectiva transacção.
Mas, para mim, é um valioso legado imaterial de doçura que permanece. Para quê jardinar hoje em dia, para quê a horta? Afinal, igualmente actos da mais leve cotação. No entanto, por eles damos testemunho daquela mesma  crença de que ainda vale a pena semear e plantar para haver e cuidar. Pois no cuidar atento e persistente, muito de nós próprios de algum modo se incorporará nos frutos que houver. E do que houver, daremos. Contas de um imemorial rosário de afectos que dedilhamos tecendo laços em que nos consumimos.

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