segunda-feira, 21 de março de 2016

RUY BELO: O Problema da Habitação Alguns Aspectos


Imaginatio Locorum
(...)
Talvez nos reste uma janela sobre a madrugada
cingindo o rosto aos mais distantes gestos
Acerquemo-nos mais: talvez possamos ser apenas um
num corpo só uma infância comum
Pela janela o sol e o comboio o sino e mesmo o cão
- nenhuma outra voz que não
a sua entre nós e a proibida aldeia
e os áditos de Deus e o coração da suspirada tarde
e o anónimo assobio perdido na azinhaga
com cheiros e com vozes e com passos de crianças
naquela inquietude que em si mesma se compraz



Como saber de mim? Eu - que diabo -! -
apesar de estrangeiro atrás da face pelo tempo atribuída
e de enxertado em oliveira e zambujeiro
talvez ainda tenha algumas tias
Talvez eu reconquiste ainda a minha tão perdida aldeia
e vá colhendo espargos ao longo do muro
senhor de mim como quem sabe as horas certas e notando ingenuamente
como por ser domingo as coisas que se vêem são diferentes


É talvez esse o dia em que recolho os olhos
e molho de maresia a mais vazia dor da minha ausência
Como encontrar-me? É ver-me nesse ou noutro dia
debaixo do olhar da mais jovem mulher
que como um manto branco pelos dias se desdobra
em Patmos nessa aldeia ou naquela inesquecível cidadela
setenta vezes vista blasfemada e admirada
sempre deserta e sempre povoada
aonde vale a pena o pôr-do-sol
e a palavra é mais do que nunca provisória
(...)

Ruy Belo, Obra Poética, vol 1, Editorial Presença, 2ª edição, Lx. 1984, pgs 78.

2 comentários:

  1. Gosto da suas fotos. Eu também fotografo de maneira semelhante. Gosto muito das madeiras gastas pelo tempo, portas antigas que os anos mostram o seu envelhecer. Parabéns pela arte..

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    1. Tão generoso o seu comentário! A minha participação é mínima. O mérito, se o há, é 99%, pelo menos, do equipamento. Ainda assim, pelo que resta e possa ser-me atribuído ... muito obrigado. Gostei muito. Boas fotos. Cumprimentos, Vítor.

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