terça-feira, 17 de janeiro de 2012

CESÁRIO VERDE. CRISTALIZAÇÕES, extracto


Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
       Vibra uma imensa claridade crua.
       De cócoras, em linha, os calceteiros,
       Com lentidão, terrosos e grosseiros, 
       Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram do relento,
        E o descoberto sol abafa e cria!
        A frialdade exige o movimento;
        E as poças d, água, como em chão vidrento,
        Reflectem a molhada casaria.


Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
       Disseminadas, gritam as peixeiras;
       Luzem, aquecem na manhã bonita,
       Uns barracões de gente pobrezita
       E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!
        Tomam por outra parte os viandantes;
         E o ferro e a pedra - que união sonora! -
         Retinem alto pelo espaço fora,
         Com choques rijos, ásperos, cantantes.


Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,
         cuja coluna nunca se endireita,
         partem penedos. Voam-lhe estilhaços.
         Pesam enormemente os grossos maços,
         Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
        Que espessos forros! Numa das regueiras
         Acamam-se as japonas, os coletes;
         E eles descalçam com os picaretes,
         Que ferem lume sobre pederneiras.


E nesse rude mês, que não consente as flores,
       Fundeiam, como esquadra em fria paz,
       As árvores despidas. Sóbrias cores!
       Mastros, enxárcias, vergas. Valadores
       Atiram terra com as largas pás.

Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! -
       Carros de mão, que chiam carregados,
       Conduzem saibro, vagarosamente;
       Vê-se a cidade, mercantil contente:
        Madeiras, águas, multidões, telhados! 

De O Livro de Cesário Verde. "Cristalizações A Bettencourt Rodrigues". A continuar.

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